mai 17, 2017 / in Media / by Francisco Vicente

Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo
Abraham Lincoln

Do ponto de vista internacional, o ano de 2016 foi marcado por um conjunto de episódios e outras ocorrências que já se arrastavam no tempo, mas que foram alvo de uma progressiva atenção mediática, não só pela novidade e/ou efeito surpresa, mas também porque o nível de atrocidade atingiu níveis sem precedentes, continuando a marcar a agenda pública. Neste sentido, encaixam-se aqui como exemplos a crise dos refugiados, a guerra na Síria, o Brexit e a eleição de Donald Trump, no passado mês de Novembro, para a presidência dos Estados Unidos. Tratando-se de factos externos à maior parte dos países, estes acontecimentos estão a moldar as políticas públicas nacionais, especificamente sobre qual a forma de responder a todos estes novos desafios, alimentando correntes populistas e procedendo a uma instrumentalização dos novos e velhos media por parte de instituições oficiais, como daremos conta mais adiante de alguns casos específicos.

É na sequência de factos que definiram o ano passado, como o referendo do Reino Unido à integração europeia e a vitória de Donald Trump, e tudo o que foi dito e publicado sobre essas matérias, que a expressão “pós – verdade” foi escolhida como a palavra do ano pelos Dicionários Oxford. Estamos perante duas situações que foram alvo de uma extensa cobertura mediática e de grande discussão e debate nas redes sociais. Susan Rubin, referindo-se a um estudo da Cision que, durante 30 dias, começando no final de Maio até 24 de Junho de 2016, monitorizou as conversas sobre essa consulta popular britânica, tendo reunido mais de 10 milhões de notícias e referências nos social media. Os dados mostraram igualmente que as consequências económicas e o choque pelo resultado da votação foram os principais tópicos da conversação nas horas seguintes. E que todos os países citados no estudo desenvolveram sentimentos claramente negativos quanto ao Brexit.

Seja pelas notícias divulgadas relativamente a esse referendo ou à campanha presidencial americana, muito se questionou acerca da veracidade da informação divulgada, o tipo de apelos que eram feitos, a origem e a intenção das fontes. Francis Fukuyama considera que, se é verdade que os políticos procuram muitas vezes esconder ou distorcer a verdade, Trump levou isso a um extremismo sem precedentes. Mentiu na campanha e nos debates quando havia claramente evidências contrárias (e provas) que contrastavam as suas afirmações. O famoso caso do certificado de nascimento de Barack Obama é apenas um caso quando se sabe que o antigo Presidente nasceu nos EUA.

Mas o que é isto então da pós – verdade? O que representa e o que está em causa, sendo que tende a ser associada ao universo político? A política pós – verdade é uma forma de cultura política, cujo debate é largamente enquadrado pelos apelos à emoção, sem o estabelecimento de uma relação com os detalhes das propostas/medidas, que acabam por ser disseminados (de modo viral), acabando por não ter lugar uma confrontação com os factos. Não sendo um tópico particularmente novo na vida política, tem ganho uma outra dimensão com a afirmação da Internet.

Num ensaio publicado, em 2015, na revista Communication, Culture & Critique, Jayson Harsin indica que assistimos à consolidação de regimes de pós – verdade um pouco por todo o mundo. A globalização, o desenvolvimento na área da tecnologia dos media, da economia política (os mercados), a profissionalização da comunicação política e as mudanças ideológicas (o neoliberalismo) contribuíram para a intensificação desses regimes. A nova paisagem mediática, com audiências fragmentadas, põe em causa a consolidação e perpetuação de visões sobre o status quo. Escreve o autor que, por cada jornal que morre, nascem 2000 novos blogues, Facebook e Twitter feeds. Todas estas novas condições espácio-temporais estão a mudar a produção, circulação e consumo da informação. Esta segmentação e conteúdos dirigidos a públicos específicos fazem com que ganhe sentido falar de “mercados de verdade” deliberadamente produzidos dentro de uma visão geral de regimes de pós – verdade.

A afirmação desses regimes é indissociável da importância e do desenvolvimento do campo do marketing, dos algoritmos e a tendência para participar digitalmente, seja por via dos “gostos”, das partilhas de páginas e da figura do produser. Numa época de crise das instituições, o marketing assumiu-se como uma forma de controlo social. Nas sociedades individualistas de massas, como há décadas se tem vindo a referir o sociólogo francês Dominique Wolton, tem sido crescente a dependência do poder dos algoritmos e as previsões de modelos de dados, cada vez mais complexos que cruzam diferentes informações. Como refere Amoore (citado por Beer no seu livro de 2013), os algoritmos funcionam como meios de dirigir e disciplinar a atenção, focando em certos pontos e deixando de lado todos os outros dados, com a

percepção de tornar possível a tradução de associações prováveis entre pessoas ou objectos em decisões seguras.

Para Jayson Harsin, os media divulgam cada vez mais escândalos, são acusados de estar ao serviço de interesses instalados, de plágio (veja-se o caso do site BuzzFeed), de uma reversão dos critérios de noticiabilidade, cimentando visões mais sensacionalistas das histórias e a consolidação de correntes como o infotainment, como popularizou Kees Brants. Todo um cenário que parece remeter para as primeiras modalidades de jornalismo. Em suma, como diz Harsin, não é que a verdade e os factos tenham desaparecido, mas são objecto de uma luta e distorção deliberada. Existem, nomeadamente, sites que procuram avaliar a veracidade dos factos e o combate aos rumores, embora exista uma grande dificuldade em reunir um conjunto significativo de audiências fragmentadas e a sua respectiva confiança/desconfiança.

A Internet possibilitou uma forma de libertação, com cada vez mais cidadãos a participarem e a fazerem-se ouvir em assuntos de natureza política, social e económica. A informação tornou-se, segundo Francis Fukuyama, uma forma de poder. E as redes sociais aceleraram uma tendência de mobilização que alimentaram várias revoluções. Os próprios Estados viram que era preciso controlar o fluxo de informação, como na China, por via do recrutamento de trolls e introdução de programas de software que introduzem nas redes sociais um conjunto de informações erradas. Tudo isso com o intuito de reforçar o poder de alguns líderes e regimes políticos.

De acordo com Fukuyama, a Rússia foi, em especial no ano de 2016, um dos grandes manipuladores dos social media. Por exemplo, o governo russo lançou falsidades, como o de que os nacionalistas ucranianos estavam a crucificar crianças pequenas. E que várias destas fontes contribuíram para os debates sobre a independência escocesa e o Brexit, visando ampliar qualquer facto duvidoso que pudesse enfraquecer as tendências pró – União Europeia.

Num artigo recente sobre as estratégias do Kremlin acerca do modo como se tornou inseparável a luta política do controlo daquilo que é publicado, Andrew Rettman indica que há grandes grupos mediáticos (entre eles a RT e a Sputnik) que trabalham em conjunto com sites extremistas, bloggers, trolls e bots individuais. Qual o objectivo? Difundir desinformação. Segundo Rettman, há muito que os media russos andam a atacar a França e a Alemanha com centenas de histórias falsas ou distorcidas. Grande parte delas visam provocar repulsa sexual para com as pessoas que pedem asilo e os políticos que os acolheram. Há inúmeros casos com referência à crise dos refugiados.

O caso de Lisa foi dos mais falados. Trata-se de uma rapariga de 13 anos de origem russa residente na Alemanha, que teria sido violada por migrantes no Verão passado. Ela saiu de casa por uns dias e disse à família que tinha sido raptada e violada por árabes. A polícia alemã afirmou que isso não correspondia à verdade e ela confessou, posteriormente, que tinha inventado tudo. Contudo, isto foi noticiado como facto por todas as grandes agências de notícias da Rússia e apoiado pelas autoridades no Kremlin. Esta história circulou durante meses em sites pró – russos escritos em línguas locais por toda a Europa (por exemplo, em checo, inglês e eslovaco) e divulgado ainda mais por trolls e bots russos nas redes sociais. Com isto visava-se denegrir a imagem da chanceler Angela Merkel, uma defensora das sanções à Rússia, ao referir que a sua política de acolhimento de refugiados tinha posto os alemães em perigo.

De outros caos poder-se-ia igualmente falar. A EUobserver estudou 2951 exemplos de fake news russas que foram recolhidos e publicados pela East Stratcom, uma entidade anti-propaganda no serviço de relações externas da União Europeia, desde Outubro de 2015. A maior parte deste material foi definido com o objectivo de legitimar a política externa russa, particularmente a anexação da Crimeia a partir da Ucrânia ou a intervenção militar na Síria. Das 189 que a East Stratcom identificou como tendo alvo directo a França e a Alemanha, 28 (15%) baseavam-se em insultos de cariz sexual contra migrantes e a comunidade LGBT nestes países.

Não deixa de ser significativo que grande parte dessas histórias remetem para questões de ordem sexual, de forma a atrair ainda mais a atenção e a gerar uma maior repulsa. Em Setembro do ano passado, os media russos alegaram, sem qualquer prova, que em muitas cidades alemãs as mulheres tinham receio de sair à rua de noite, com medo de serem violadas por refugiados. Foram divulgadas histórias infundadas sobre violações em massa cometidas por migrantes na Bélgica e na Suécia, o país que acolhe mais refugiados per capita, e que, por causa disto, estes se tinham tornado “a capital de violações na Europa”, segundo as notícias russas. E, de acordo com Andrew Rettman, em Novembro de 2015, um site checo pró – russo dava conta que a Alemanha planeava legalizar a pedofilia na União Europeia.

Por outro lado, não há dados concretos sobre o impacto deste tipo de alegações na opinião pública e a sua atitude perante as instituições e os líderes europeus. Mas um inquérito da Pew, relativo a 2016, revelou que a propaganda russa estava a atrair um número considerável de pessoas na Europa. Segundo essa sondagem, entre 25% e 30% das pessoas em França, na Alemanha, na Itália e em Espanha acreditavam, por exemplo,

que não havia tropas russas no leste da Ucrânia, apesar de todas as evidências em contrário. É de salientar que, até ao momento, também não existem estudos detalhados sobre o modo como os media russos colaboram com sites extremistas e bloggers, quantos editores são agentes do Kremlin e quais reproduzem conteúdos falsos porque acreditam neles. Quem está orientado para a desinformação? Quem está a alcançar os opinion makers? São um conjunto de questões de resposta difícil e que levará tempo até se apurar a verdade. Podemos também interrogar-nos do seguinte: não estarão outras democracias ocidentais a adoptar, aqui e ali, em situações específicas, estratégias semelhantes às da Rússia neste capítulo?

Aquando do Brexit e da campanha presidencial americana falou-se que o Facebook estava a ser incapaz e negligente no combate à disseminação de notícias falsas na Internet. Na rede ganhou expressão, e através do efeito viral das redes sociais, que o Papa Francisco era um apoiante da candidatura de Donald Trump à presidência dos EUA. Que não correspondia à verdade, nem o Sumo Pontífice tinha sequer abordado o tema.

Em Janeiro de 2017, as autoridades da Alemanha comunicaram que iriam ser o primeiro país, fora dos EUA, a ter um filtro de notícias falsas no Facebook. Num ano em que há eleições nesse país, essa rede social informou que iria começar a testar essa ferramenta. O que está previsto é que os utilizadores alemães do Facebook possam denunciar uma história como sendo falsa. Depois de sinalizadas, são encaminhadas para o “Correctiv”, uma plataforma externa à rede social que vai confirmar se a história é verdadeira. Tratando-se de uma notícia falsa, a publicação passará para segundo plano no feed do Facebook. O que se pretende é que, mediante as partilhas dessas histórias, os utilizadores recebam um aviso de que estão a divulgar um conteúdo que pode não ser verdadeiro.

Em síntese, o ano de 2016 ficou marcado pela afirmação da ideia da pós – verdade (ou mundo pós – facto, para outros) em que as fontes de informação idóneas foram desafiadas por factos contrários de qualidade e origem duvidosa. A perspectiva de que a verdade acaba sempre por emergir parece hoje nitidamente posta em causa num mundo de trolls e de softwares de divulgação enganosa nas redes sociais. Segundo Fukuyama, estima-se que entre um quarto e um terço dos utilizadores do Twitter se enquadram nesta categoria. Mas qual o motivo para acreditarmos na veracidade de quaisquer factos? Apesar de alguns problemas graves, não pode deixar de ser salientado que existem instituições imparciais responsáveis pela produção de informações factuais

em que confiamos. Órgãos de comunicação social, como o New York Times, têm sistemas preparados para evitar que erros factuais flagrantes apareçam impressos. Todavia, Fukuyama duvida que outras organizações estejam a ter a mesma atenção e refere o exemplo da Breitbart News (que havia sido liderada por Steve Bannon, antes da tomada de posse de Donald Trump, e que é hoje um dos seus principais conselheiros), conotada com grupos da direita ultra-nacionalista, não acreditando que tenham equipas de verificação de factos e que investiguem a exactidão do material divulgado nos seus sites.

É cedo para fazer um balanço, até porque só passaram três meses desde a sua tomada de posse, mas muitos questionam a forma como Donald Trump diz uma coisa e noutro momento é capaz de dizer exactamente o seu contrário. Por exemplo, recusou-se a aceitar a credibilidade dos serviços de informação americanos que culpavam a Rússia de piratear o Comité Nacional Democrata. E, por outro lado, tende a divulgar e a replicar (nomeadamente no Twitter, onde contabiliza mais de 15 milhões de seguidores) informação inexacta ou falsa (como um atentado na Suécia) a partir de sites ou outros órgãos de comunicação que não procederam a uma verificação prévia daquilo que publicam ou difundem. É provável que não fique por aqui…

Bibliografia consultada

Beer, D. (2013). Popular culture and new media. The politics of circulation. New York: Palgrave Macmillan.
Brants, K. (1998). “Who’s Afraid of Infotainment?” European Journal of Communication, 13(3).

Fukuyama, F. (2016). O aparecimento de um mundo pós-facto. http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/interior/o-aparecimento-de-um- mundo-pos-facto-5575599.html (acesso: 25/04/2017)
Harsin, J. (2015). “Regimes of Posttruth, Postpolitics, and Attention Economies”. Communication, Culture & Critique, 8(2).

Rettman, A. (2017). Sexo e mentiras: as notícias da Rússia sobre a UE. https://www.publico.pt/2017/04/21/mundo/noticia/sexo-e-mentiras-as-noticias-da- russia-sobre-a-ue-1769631 (acesso: 25/04/2017)

Rubin, S. (2016). Brexit Sparks Global Financial Concerns: A Look at Social Reaction. http://www.cision.com/us/2016/06/brexit-sparks-global-financial-concerns-a-look-at- social-reaction/ (acesso: 25/04/2017)

Tags : TrumpBrexitSíriaRefugiadospós-verdade

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About Francisco Vicente

Analista de media na Cision Portugal. Licenciado em Ciências da Informação e doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. Tem publicado trabalhos na área da comunicação política. Gosta de viajar, ler, música e de futebol."